Iatrogenia, etimologicamente, refere-se às doenças ou aos danos causados pela prática médica. É um problema conhecido há milênios — já advertia Hipócrates (460-370 a.C.), considerado o pai da medicina ocidental: "o médico deve... ter dois objetivos, fazer o bem e evitar fazer o mal", (em Epidemicos I). Noção igualmente eternizada na famosa frase da Bioética: primum non nocere — também conhecido como o Princípio de Não Maleficência. Apesar de toda a beleza do princípio e das frases, de acordo com estudos recentes, a iatrogenia já se tornou a terceira principal causa de morte nos EUA. E a tendência é que aumente.
Quando se fala no discurso público geral sobre iatrogenia, na verdade, se está falando unicamente de um tipo de iatrogenia: a iatrogenia clínica. É o polímata Ivan Illich, em seu livro Medical Nemesis, quem irá expandir o problema, ao falar sobre os três tipos de iatrogenias. Ele diz: “Eu emprego essa palavra [iatrogenia] com um sentido mais amplo, para designar os efeitos não desejados provocados pela empresa médica sobre a saúde, não apenas por seu impacto direto mas igualmente pelas transformações que opera ao nível social e ao nível simbólico.” Como no discurso público comum limita-se a falar dessa iatrogenia mais direta e evidente, ignora-se os efeitos sutis, mas igualmente trágicos das diferentes iatrogenias.
Ele conclui que as iatrogenias se tornaram irreversíveis, pois chegamos a um loop, ou a um mecanismo de retroalimentação positiva1: as medidas técnicas e burocráticas adotadas para evitar os danos aos pacientes (devido aos tratamentos médicos) geram, elas próprias, danos aos pacientes; estes danos estimulam mais medidas burocráticas para evitar danos…
A única possibilidade de reversão seria retroceder o processo tecnicista gerencial e o monopólio do cuidado dos sistemas de saúde. É, como escreveu Jean-Pierre Dupuy2, um problema de excesso de força (ou de incapacidade de controlar o crescimento da força). Conquanto, a solução apresentada na prática é sempre uma outra força maior, um novo e colossal sistema burocrático que irá controlar os excessos e os erros burocráticos. Se a medicina moderna está com problemas, a solução que receberemos é que devemos aumentá-la, modernizá-la, expandi-la e, claro, investir mais dinheiro, mais recursos, mais pessoas. Tal qual o eterno problema das escolas brasileiras: o problema sempre é a falta de dinheiro — mesmo quando investirmos 95% do patrimônio nacional na educação, o problema será falta de recursos.
“E ao contrário do convencional atual sabedoria, os serviços médicos não têm sido importantes na produção das mudanças na vida expectativa que ocorreu [nas últimas décadas]”, Ivan Illich.
Os Três Tipos de Iatrogenia
Como já dito, Ivan Illich especifica três tipos de iatrogenia. Vamos a elas.
O primeiro tipo ele chamou de Iatrogenia Clínica.
“As intervenções técnicas das profissões de saúde contraindicadas, erradas, brutais, inúteis, ou mesmo as prescritas de acordo com as regras da arte, representam apenas uma das fontes da patologia de origem médica. O termo iatrogênese clínica cobre esse conjunto de patologias na nomenclatura corrente.”
Este é o mais conhecido, é o que se pensa automaticamente ao se falar de iatrogenia. Somente essa iatrogenia costuma entrar no cálculo estatístico das mortes iatrogênicas. É o dano causado pelos tratamentos — adequados ou inadequados. Inclui-se, assim, tantos os erros médicos quanto o tratamento padrão ouro (quando se segue perfeitamente todas as recomendações formais e atualizadas).
“A maior parte dos danos infligidos pelo médico moderno não se enquadra em nenhuma dessas categorias [incompetência, falta ao dever, preguiça]. Na verdade são produzidos na prática diária de homens bem formados, que aprenderam a agir conforme o quadro de valores e as técnicas admitidas pela profissão, e foram treinados para reprimir a consciência dos danos que provocam.”¹
Com efeito, um grande caráter da iatrogenia na medicina moderna é o seu novo status anônimo, impessoal, técnico e quase que respeitável. O que antes era considerado um dano lastimável, agora é racionalizado como risco probabilístico, falha ocasional ou erro aleatório. A despersonalização do diagnóstico e da terapêutica transferiu falhas do campo ético para o âmbito do problema técnico. Enfraquece-se, naturalmente, a consciência do médico, ao causar algum dano ao paciente, pensa o profissional de saúde: “Eu estava somente seguindo ordens… As melhores ordens disponíveis!”
Podemos chegar ao ponto do médico jamais mudar sua prática, mesmo que veja pacientes piorando e morrendo aos montes com os tratamentos ofertados, pois ele está seguindo a “ciência” e os protocolos. Na era da “Medicina Baseada em Evidências” corremos o risco de, como nunca antes, ignorarmos o evidente, aquilo que está em nossa frente e que vemos com os próprios olhos — ou seja, o paciente.
O segundo tipo, Illich deu o nome de Iatrogenia Social. Refere-se aos danos à saúde individual que foram produzidas pelas transformações socioeconômicas possibilitadas ou estimuladas pelas instituições de saúde. Mais do que a ação direta técnica da medicina, fala-se aqui do efeito social não desejado e danoso da instituição médica. De acordo com o polímata, a prática médica vigente estimula uma sociedade mórbida, qual encoraja que as pessoas se tornem consumidores de uma medicina industrial, curativa e preventiva; em vez de buscarem atuar na sociedade em si. Possibilita-se um progressivo adoecimento da sociedade, pois tratamos medicamente os sujeitos adoecidos pela enferma sociedade.
Exemplos da iatrogenia social são: a invasão farmacêutica, com o superconsumo de medicamentos3; o aumento exponencial dos gastos orçamentários (em saúde) do Estado4; o controle social pelo diagnóstico, quando o profissional da saúde passa a ser visto como um burocrata que dá a cada cidadão o seu destino; a medicalização da prevenção, quando não se precisa estar doente para se tornar um paciente; dentre outras questões.
O conceito de iatrogenia social não é bem aceito como causador de doenças. Caso contrário, todo o sistema industrial perderia sua defesa se admitíssemos que os diagnósticos cumprem, recorrentemente, a função de transformar exigências políticas (contra o estresse do constante “crescimento”) em demandas terapêuticas, quais são estas igualmente dispendiosas, crescentes, estressantes. Em consequência, também abalaria as estruturas do aparato médico.
E o terceiro, que foi chamado de Iatrogenia Cultural ou Iatrogenia Estrutural. Com isso, o autor se refere ao fato de todo o aparato de saúde ter um profundo efeito cultural; especificamente: o efeito de destruir o potencial das pessoas lidaram com suas fraquezas humanas, vulnerabilidades e singularidade de maneira autônoma e individual.
“A fidelidade e o servilismo crescente à terapêutica afetam também o estado de espírito coletivo de uma população. Uma demanda idólatra de manipulação substitui a confiança na força de recuperação e de adaptação biológica, o sentimento de ser responsável pela eclosão dessa força e a confiança na compaixão do próximo, que sustentará a cura, a enfermidade e o declínio. O resultado é uma regressão estrutural do nível de saúde[…]. Essa síndrome de regressão, chamo-a iatrogênese estrutural.”¹
A saúde do homem tem sempre um tipo de existência socialmente definida. Sendo papel essencial de toda cultura fornecer chaves para a interpretação destas três ameaças: sofrimento, enfermidade e morte. O sujeito na medicina contemporânea é, acima de tudo, um doente que requer o tratamento médico — com isso ocorre a paralisia das respostas saudáveis ao sofrimento, à desabilitação e à morte. Esta, a morte, torna-se somente algo a se evitar e sem nenhum sentido — mas isso é esvaziar também o sentido da vida mundana: já que o sentido da vida aqui neste mundo é atrelada à sua finitude.
Um bom exemplo da iatrogenia estrutural é a questão da dor, que fora transformada em problema de economia política. Retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal e transforma a dor em problema técnico. Os sujeitos passam a conceber sua própria dor como fato clínico objetivo, que deve, unicamente, ser submetido ao tratamento estandardizado. Aprende-se a se conceber como consumidor de anestesias: lançando-se à procura de tratamentos para obter insensibilidade, inconsciência, abulia e apatia provocadas artificialmente. Torna-se, antes de tudo, um consumidor devotado aos três princípios: anestesia, supressão da angústia e gerência das próprias sensações. Passa a ser razoável suprimir a dor, mesmo que isso suprima a liberdade ou a consciência.
Até mesmo quando sem dor e sem doenças, o sujeito está sempre temendo a vindoura enfermidade. A hipocondria é uma condição que tomou conta da atualidade: todo mundo é, ao menos, algo hipocondríaco; e muitos o são intensamente. É uma iatrogenia cultural, fruto de uma sociedade supermedicalizada. Condição preocupante, pois milhões se submetem a tratamentos, procedimentos e exames desnecessários (devido ao medo excessivo de doenças), sofrendo sérios efeitos adversos e até mortes.

Para usar um termo médico.
Jean-Pierre Dupuy, O Tempo das Catástrofes - Quando o impossível é uma certeza.
Jean-Pierre Dupuy, Serge Karsenty, L'Invasion pharmaceutique.
Afirma Illich: “Não existe precedente de semelhante expansão de setor econômico em tempo de paz” e “O nível de saúde não melhora mesmo quando aumentam as despesas médicas”.
Primeiro texto seu que leio, Diogo. Gostei muito. Acredito que, em nossos tempos, já há ao menos mais uma categoria - algo como uma "Iatrogenia Pandêmica", talvez. É assustador o quanto a pandemia (e tudo o que a envolveu, em termos socioculturais) fez crescer a busca por proteção médica, o medo da morte etc.
Excelente reflexão. Minha avó teve câncer (mieloma múltiplo). Quando descobriram, fizeram um alarde para que ela se internasse no mesmo dia, a fim de começar a químio o quanto antes. Bom, ela estava ótima até então. 85 anos, morava só, super independente, ninguém dizia a idade. Entrou no hospital alegre, andando e sorridente. Na internação, pegou uma infecção intestinal grave, e o remédio para combatê-la causou convulsões tão sérias que ela precisou ser induzida ao coma. Ficou cerca de 1 mês assim. Depois de se recuperar do coma, minha vó não era mais a mesma: não podia mais ficar sozinha e dependia da família para tudo. As químios parece que a levaram ainda mais rápido... Em seis meses, ela se foi e foi bem debilitada. Outros meses depois, descubro que o câncer no estágio do dela não teria chance de cura e os cuidados paliativos teriam lhe proporcionado mais qualidade de vida e, talvez, até mais tempo conosco. Nada me tira da cabeça que foi um caso de iatrogenia... (E o médico que insistiu na internação sequer foi vê-la no fim da vida ou nos mandou alguma mensagem de pêsames.)