O sujeito que tem Depressão usará um Antidepressivo. O paciente com diagnóstico de Transtorno Bipolar (isto é, com um humor instável) receberá um Estabilizador de Humor. O esquizofrênico (o psicótico) terá de tomar um Antipsicótico. Isso significa que a medicação é específica aos transtornos, que ela é uma cura precisa? Ao menos, é isso que a terminologia indica. O nome — e nome importa muito — sugere uma ação idêntica à Insulina para o diabético tipo 1. Temos a doença e temos o anti- tal doença.
A influente psiquiatria e cientista Joanna Moncrieff esclarece em diversos artigos científicos e em seu livros, The Myth of the Chemical Cure e The Bitterest Pills, uma questão que se tornou ponto chave para minha avaliação pessoal da psiquiatria: os dois modelos explicativos das medicações psiquiátricas. Temos o Modelo Centrado na Droga e o Modelo Centrado na Doença. O primeiro vingara por uns bons anos na Psiquiatria; o segundo surgiu há pouco tempo, mas tomara tamanha proporção que aquele foi esquecido por completo.
Vamos a um resumo de ambos, começando com o vigente atualmente.1
A psicofarmacologia moderna desenvolveu-se na década de 1950 junto com a introdução de novos tratamentos medicamentosos na psiquiatria. No entanto, em contraste com numerosas descrições empíricas dos efeitos dos medicamentos sobre aspectos da psicopatologia, há poucas discussões sobre os pressupostos teóricos acerca da ação dos medicamentos. Esses pressupostos, no entanto, existem e influenciam o tratamento dos transtornos mentais. De fato, o tratamento psiquiátrico com medicamentos atualmente se baseia em um modelo de ação de medicamentos "centrado na doença", que propõe que a maioria dos medicamentos psiquiátricos atua como tratamentos específicos para condições específicas. A nomenclatura atual incorpora essa posição com nomes como antipsicóticos, antidepressivos, ansiolíticos, antimaníacos e estabilizadores de humor.
Rethinking Models of Psychotropic Drug Action; Joanna Moncrieff.
Modelo Centrado na Doença
O Modelo Centrado na Doença refere-se à ideia de especificidade entre a ação da droga e a doença. Sugere-se a existência duma correspondência direta entre a — suposta — alteração da doença (aumento ou diminuição de algum neurotransmissor, por exemplo) e o efeito da medicação (respectivo aumento ou diminuição de efeito do neurotransmissor). A medicação estaria atuando precisamente nos mecanismos explicativo e causativo da patologia. O termo muito usado neste modelo é correção — por exemplo, o antidepressivo atua corrigindo uma desequilíbrio químico (chemical imbalance) de serotonina no cérebro. Este é um famoso bordão psiquiátrico; apesar de nunca ter sido comprovado e os médicos saberem disso.
A analogia é feita com a insulina para o diabetes tipo 1 (DM1). Nesta doença, há um deficiência biológica de produção de insulina, fornecer a insulina ao sujeito é uma terapia específica ao doente que possibilita uma vida quase normal. Não é propriamente uma cura, já que não retorna a função pancreática normal; mas é um tratamento específico à doença. (Inclusive, é um belo exemplo para não criticarmos excessivamente a “medicina moderna”: antes dela, aqueles com DM1 morriam jovens)2.
Esta visão fora transportada para a psiquiatria. O antidepressivo, já está no nome, é a insulina do depressivo; o estabilizador de humor é o antibiótico do bipolar; o antipsicótico é o analgésico do psicótico.
Modelo Centrado na Droga
O Modelo Centrado na Droga dirá algo bem diferente: a medicação psiquiátrica não está curando alguma dita alteração cerebral no doente, não proporciona nenhuma “correção” biológica ao paciente. A medicação realiza um efeito, algum tipo de alteração, que pode ser percebida e considerada como benéfica em diversas situações. Não é, portanto, uma negação da possibilidade de melhora com a medicação — eu mesmo prescrevo medicações psiquiátricas em minha prática. Somente se está afirmando que não existe uma correlação direta (e mágica) entre o transtorno mental e a medicação.
O clássico exemplo dos defensores — como eu — deste modelo é o do álcool para o excessivamente tímido. Os efeitos de desinibição social do álcool podem aliviar — com tremenda eficácia aguda, diga-se de passagem — a fobia social. No entanto, isso não implica que o álcool corrija um desequilíbrio químico subjacente à fobia social. Certamente nenhum médico ou cientista ousaria afirmar que o sujeito possui uma deficiência de álcool, por mais que gostaríamos que assim fosse. O álcool funciona, mas não atua na causa da fobia social, nem corrige nada. Gera um efeito considerado benéfico para aquele indivíduo.
A inclinação natural do defensor do Modelo prévio é dizer algo como: “Estamos falando de medicações, não de drogas!” Mas a questão seria precisar o que isso significa. Há, realmente, uma diferença qualitativa absoluta entre drogas recreativas e medicações (ou plantas)? São químicos, ora. Talvez um seja mais prazeroso que o outro; mas, por exemplo, ambos têm potencial de causar dependência e abstinência (assim como o café). A ideia de diferenciar em absoluto a medicação dos demais químicos é precisamente um pensamento mágico (cientificamente mágico). É a perda da noção clássica da medicina sumarizada na famosa frase de Paracelsus: “Todas as coisas são venenosas” e “A dose faz o veneno”3. Hoje, os medicamentos são pseudossacramentos mágicos, distintos de todo restante de químicos.
A visão vigente sobre a ação dos medicamentos na psiquiatria é que o medicamento psiquiátrico funciona ao corrigir uma suposta anormalidade cerebral subjacente. Eu chamei isso de modelo "centrado na doença". Uma explicação alternativa é o modelo "centrado no medicamento", que sugere que os medicamentos psiquiátricos influenciam os sintomas de distúrbios mentais por meio de seus efeitos psicoativos. Drogas 'psicoativas', às vezes referidas como 'drogas que alteram a mente' (mind-altering drugs), incluem drogas recreativas, drogas prescritas para problemas de saúde mental e alguns outros medicamentos (por exemplo, esteroides, anticolinérgicos). Elas modificam pensamentos, emoções e comportamentos de maneiras características.
Against the stream: Antidepressants are not antidepressants – an alternative approach todrug action and implications for the useof antidepressants; Joanna Moncrieff.
O Modelo Atual é Axiomático
O Modelo atual quase nunca é discutido na Psiquiatria. Ele é tão onipresente que não é percebido. Ele é prévio a qualquer conhecimento elaborado, e assim sendo, influencia profundamente tudo na psiquiatria. É o potente axioma do qual partem os próprios estudos científicos e discussões psiquiátricas. Escreve Joana, em The Bitterest Pills: “A emergência do modelo centrado na doença da ação dos medicamentos psiquiátricos não se baseou em descobertas de pesquisa, nem em discussões ou debates teóricos”.
O Modelo Centrado na Doença, apesar de raramente citado de maneira explícita, está bem presente nos principais livros psiquiátricos. A sua existência é facilmente percebida a partir da forma que os medicamentos psiquiátricos são descritos e investigados. Sem dúvidas, como os medicamentos psiquiátricos são atualmente nomeados e classificados refletem fortemente o modelo de ação dos medicamentos centrado na doença: o recorrente prefixo anti indica esta cura específica.
“A ideia de que os antipsicóticos devem ser continuados a longo prazo parece ter sido estabelecida cedo na história de seu uso.” The Bitterest Pills, Joanna Moncrieff.
Assim foi porque o axioma entrara em vigência. Logo, nada mais natural do que pressupor o uso contínuo, sem necessidade de comprovações ou reflexões. Se se pensa que o Antidepressivo corrige o Depressivo, tal qual a Insulina para o DM1, é maquinal advogar seu uso ad aeternum. Bastamos ignorar uma simples distinção: todo sujeito com DM1 melhora com insulina, não há nenhum caso que ficaria melhor sem a medicação; mas há depressivos que pioram com os Antidepressivos.
Ou, melhor, uma Paralaxe Cognitiva
Em geral, os médicos e cientistas, ao serem questionados, dirão que realmente não existem comprovações robustas de que a medicação seja corretiva ou específica para os transtornos. Mas não é como atuam na prática. A visão Centrada na Doença é algo sempre subjacente, quase que inconscientemente — é, de fato, o humor [Stimmung] psiquiátrico, ou a cosmovisão [Weltanschauung] psiquiátrica: sem que se perceba, guia todas as condutas dos psiquiatras.
Muitos possuem aquela eterna esperança científica positivista, de que chegará o dia em que a ciência terá explicado tudo. Há uma certa suposição de que somente ainda não foi comprovado a especificidade mágica da medicação. Basta confiarmos e aguardamos, que isso haverá de ser esclarecido pela ciência tecnológica. Até lá: “finjamos até se tornar verdade” — o primeiro a dizer isto foi um cientista, não um coach. Chegará o dia em que a ciência será tão avançada que os exames detectarão a depressão antes que ela se manifeste. Antes de sentirmos tristeza, dor, incômodo, o tratamento será instituído; e, assim, arremataremos a Sociedade Paliativa da qual fala Byung-Chul Han.
É essa cosmovisão psiquiátrica que faz com que o psiquiatra se irrite profundamente com o sujeito depressivo que, após uma tentativa de suicídio, informa que parou o antidepressivo há uns meses, pois se sentia pior com a medicação (não melhorou da depressão, e talvez não conseguia mais ter relação sexual com a esposa ou tinha a insondável sensação de não ser si mesmo). Pouco importa da falta de comprovação robusta de que o Antidepressivo diminua suicídio (coisa que toda psiquiatra sabe) — em verdade, é bem estabelecido que ele aumenta o suicídio nas semanas iniciais4. O que se pensa sem perceber, a despeito da falta de “evidência” científica, é o seguinte: ele, o depressivo, só tentou se matar porque não está tomando o Antidepressivo.
Por definição, um axioma é aquilo que não precisa se comprovar. E é o axioma psiquiátrico: o antidepressivo é a cura específico da depressão. Deveras um pensamento estranhíssimo diante do evidente quadro reativo para a maioria casos diagnosticados como depressão atualmente — isto é: uma reação normal a situações anormais, graves e deprimentes. Até o orgulhoso cientificismo da “Medicina Baseada em Evidências”, com suas “evidências” contrárias, tem pouco poder aqui. Mas a situação vai além dum mero axioma, pois mesmo quando o próprio médico atua de maneira contrária, ele não percebe nenhuma incongruência. As ditas provas científicas serem ignoradas, vá lá, mas ignorar as próprias ações diárias é mais complicado.
Com isso quero dizer que é uma condição mais grave, é uma Paralaxe Cognitiva: quando a prática contraria a teoria diariamente; mas o sujeito não percebe. É nesse sentido que mesmo ao usarmos Antidepressivos para diversos quadros além de Depressão (TOC, Ansiedade, Ejaculação precoce…) e Antipsicóticos para condições ainda mais variadas (TOC, Depressão, T. Bipolar, T. de Personalidade…), será dito que o Antidepressivo é específico para Depressão e que o Antipsicótico atua no desequilíbrio de dopamina da Esquizofrenia. Usa-se as medicações para diversas condições bastante distintas, mas elas continuam sendo específicas. Inclusive, muito frequentemente com melhor eficácia em outras condições: o Antidepressivo (especificamente a classe dos ISRS) é mais eficaz no TOC e na Ejaculação Precoce5 do que na própria Depressão.
Muitas substâncias não classificadas como antidepressivo (e com ações bem distintas da classe dos chamados Antidepressivos) possuem efeitos na depressão — com eficácia, ao menos, equivalente às medicações da classe antidepressiva e, não raramente, com menos efeitos colaterais. Alguns exemplos são benzodiazepínicos, estimulantes, cetamina e extrato de hypericum. Acrescenta-se medidas não farmacológicas, como a atividade física, a psicoterapia e, mais recentemente, as técnicas de estimulação magnética (EMT, Estimulação Magnética Transcraniana).
(…) O fato das condições depressivas responderem a uma variedade de psicoterapias também implica que a recuperação não é alcançada por meio de uma manipulação bioquímica específica.
The antidepressant debate, Joanna Moncrieff.
Apesar disso, diversos autores sugerem que as diferentes medicações usadas para depressão possuem efeitos específicos na doença. Isso, evidentemente, é uma falha lógica: não se pode extrair efeitos específicos de efeitos não específicos. Não se pode dizer que tudo é específico para depressão. Antidepressivos que atuam majoritariamente em Serotonina, Benzodiazepínicos que influenciam receptores GABA e Cetamina que antagoniza os receptores NMDA, todos curam especificamente a mesma doença? Ou, só o Antidepressivo (serotonina) seria específico; apesar de outras medidas serem tão efetivas6 quanto — ou até mais efetivas, e bem mais seguras?
Este é um ponto crucial. Note mais uma falha na comparação com DM1: nada substitui a Insulina, nada é tão efetivo quanto a Insulina7.
Já fiz algumas vezes esta piada psiquiátrica (com sucesso, os psiquiatras costumam rir: rir por ser verdade): “na dúvida, basta receitar um Aripiprazol”. A chiste surgiu porque a cada dia mais se expande as já amplas possibilidades de usos desta medicação. O Aripiprazol é da classe dos “Antipsicóticos de Segunda Geração”; sendo, ao mesmo tempo, visto como específico para Transtornos psicóticos (afinal, é um “antipsicótico”) e usado — também com ideias de ser corretiva8 — para praticamente qualquer condição psiquiátrica (Depressão, TOC, Autismo, Demência e muito mais). Não vejo problema algum nesta amplitude de uso, mas não perceber que tal uso contradiz o Modelo vigente é duma cegueira impressionante — de fato, uma condição de paralaxe cognitiva. O Aripiprazol não pode ser específico para tudo… A não ser que digamos que todas as doenças psiquiátricas possuem precisamente a mesma neurobiologia, o que seria um neurodisparate
para o neurocientista.
O Nome
O nome inicial das medicações psiquiátricas eram muito diferentes. Nós tínhamos termos como “tônicos”, “estimulantes”9, “tranquilizantes maiores e menores”, “neurolépticos”, “calmantes”. Neurolépticos fora um dos termos inicias dos hoje chamados Antipsicóticos, este nome vinha duma visão mais Centrada na Droga: neuroléptico, etimologicamente, significa agarrar ou conter os nervos. Outro termo para estas medicações era tranquilizante maior [major tranquilizer]; em contraste com os benzodiazepínicos que seriam tranquilizantes menores [minor tranquilizer]. Alguns dos Antidepressivos de hoje eram chamados de tônicos, como é o caso da Amitriptilina.
Como explicou o neurofisiologista Ralph Gerard, um dos primeiros líderes americanos em neurociência, em 1957: “Se um determinado medicamento é chamado de tranquilizante [maior], é provável que seja prescrito para psicóticos perturbados, por ser comparado com a Clorpromazina(…). Se dermos o nome de hipnótico, é provável que seja usado até dez ou vinte vezes mais, por ser comparado com barbitúricos, e por ser aceito tão naturalmente quanto a aspirina.” De fato, o nome é muito importante: altera o que veem os olhos e o que prescrevem os médicos.
É recente a febre terminológica do anti alguma coisa. Surgiu com os Antibióticos, quais criaram um longevo sonho (jamais alcançado) da farmacologia: a Bala Mágica [Zauberkugel]. Termo trazido para farmacologia em 1907 por Paul Ehrlich, a partir dum mito alemão de balas mágicas que sempre atingem o alvo desejado. A expectativa era avançarmos tanto na ciência que seria possível criarmos substância químicas que atuariam tão especificamente que passariam despercebidas para as demais funções corporais.
Com a descoberta dos antibióticos, nasceu a expectativa que seria possível matar somente as bactérias patógenas, sem causar demais danos ao nosso corpo. Hoje sabemos os diversos e muitas vezes gravíssimos efeitos colaterais dos antibióticos; assim como dos Antidepressivos, Antipsicóticos e demais medicações psiquiátricas. Os efeitos colaterais são tão variados que podem afetar qualquer sistema corporal, na verdade, as medicações psiquiátricas, em geral, atuam mais perifericamente do que centralmente10.
Uma Cura Obscura
No Modelo atual, o médico tem a tendência de ver a medicação não só como uma cura específica, mas uma cura obscura: mesmo quando o sujeito diz que não está melhor, que se sente até pior, se pensa que a medicação está curando seus desequilíbrios subjacentes. O paciente em si não precisa sentir a cura, pois é uma neurocura; uma cura obscura e mágica atingida pelo avanço científico. Tende-se, inclusive, a ter uma certa raiva do paciente, por sua negação e resistência em melhorar a despeito do uso do tratamento específico e curativo. O problema é sempre com o paciente, nunca com a magia da medicação.
Se não há melhora, o paciente é resistente aos medicamentos (existe o termo Depressão Resistente, que é extremamente comum); não as medicações ineficazes. As medicações farmacêuticas tornaram-se, com efeito, pseudossacramentos — termo usado por David Healy. É, novamente, a perda da antiga noção médica de que todas as coisas são (potencialmente) venenosas; e o trabalho do médico é precisamente extrair o bem de um possível veneno. Os médicos agora veem as medicações como qualitativamente distintas de todos as demais substâncias químicas. Seriam sempre benéficas. E quando não são, a causa está no paciente (ele é o culpado).
A cafeína, por exemplo, diversos estudos comprovam que ela melhora atenção e concentração; mas ninguém iria propor que o café seja específico para o TDAH. Num mesmo sentido, a nicotina (sintética, sem potencial cancerígeno; mas mesmo potencial aditivo), de acordo com estudos, melhora significativamente os sintomas de TDAH e de TOC; mas, novamente, seria ultrajante propor a nicotina como curativa. Muitos médicos, apesar de prescreverem medicações com seríssimos efeitos colaterais (muito mais grave do que nicotina, inclusive com alto potencial de dependência e vício), achariam absurdo o uso terapêutico de Nicotina sintética, por seu potencial de dependência. Em verdade, se a nicotina fosse uma substância patenteável, seria uma medicação psiquiátrica bastante promovida e prescrita.
David Healy diz que os ISRSs, a classe de antidepressivo mais usada, são antes “serenic drugs” (isso é, medicações que induzem menor reatividade aos estímulos e aos estresses da vida) do que anti-depressivos — não à toa a queixa de apatia profunda, de não sentir mais nem tristeza nem felicidade, é uma das queixas mais comuns com este medicação. Tal efeito ocorre nas pessoas em geral, não somente em quem “fecha o diagnóstico” para alguma doença psiquiátrica11. O efeito da medicação não é obscuramente específico em quem preenche um checklist operacional e provisório para Transtorno Depressivo Maior.
Enfim, como diz Moncrieff, em The Myth of the Chemical Cure, o prévio Modelo Centrado no Medicamento implica em um tipo diferente de relação entre médico e paciente. Aqueles devem informar a gama de efeitos que um medicamento pode induzir, tanto os que podem ser úteis quanto os que provavelmente serão prejudiciais, culminando em uma decisão conjunta. Sendo a experiência dos pacientes com os efeitos dos medicamentos o principal determinante da utilidade destes. Eles se tornam mais ativos no tratamento. O que o paciente sente, percebe e relata contém mais importância do que o dito efeito neuroquímico da medicação.
Portanto, o Modelo Centrado no Medicamento promove um processo de tomada de decisão compartilhada. Isto é o que busco fazer em minha prática. Como disse, não sou contra medicações psiquiátricas: prescrevo-as em minha prática. Mas antes explico todos os efeitos das medicações, tanto os potencialmente benéficos quanto os maléficos12 (inclusive os raros, mas catastróficos). O médico, do ponto de vista ético, deve sempre fazer isso antes de iniciar qualquer medicação — é o chamado “consentimento livre e esclarecido”. E na avaliação longitudinal, buscaremos avaliar se a medicação está ajudando ou atrapalhando aquele indivíduo. Tendo uma visão mais fenomenológica do que neurobiológica.
O poder do psiquiatra seria menor do que é hoje e as expectativas das pessoas em relação ao resultado do tratamento seriam mais singelas. A psiquiatria seria uma empreitada mais modesta, evitando assim boa parte dos danos associados às suposições mágicas de curas químicas da mente.
Nós, os Culpados
“As empresas farmacêuticas, que, até a década de 1940, estavam ocupadas anunciando barbitúricos e estimulantes para o mercado em massa de ‘nervos do dia a dia’.”
Joanna Moncrieff — The Bitterest Pills.
Uma observação interessante é que eu não sou tão mais crítico da “Big Pharma” do que boa parte dos médicos. Muitos reconhecem que a Big Pharma é seriamente problemática e pouco confiável. Provavelmente tenho conhecimento dos crimes cometidos, já que poucos leem sobre o tópico13. Mas o mais relevante é que provavelmente sou mais crítico de nós médicos, da Medicina científica e de sua mistura ativa e autônoma com aquela. A diferença maior é que insisto nisto: não há de cá o jaleco alvo da bela e pura Medicina; e acolá os malvados e gananciosos executivos da Big Pharma, com seus ternos pretos…
Interessante notar que a obsessão pelo Modelo Centrado na Doença não veio da famigerada Indústria Farmacêutica. Bem ao contrário, a Indústria Farmacêutica apreciava o antigo Modelo Centrado na Droga; já que possibilita um uso mais liberal das drogas. Não se precisava dum diagnóstico para se usar a medicação psiquiátrica. Preferiam que simplesmente medicássemos, por exemplo, as “donas de casa” com suas queixas “nervosas” genéricas; sem pensarmos em diagnósticos bem estabelecidos. Paciente se queixou de tensão ou de cansaço? Dê um sedativo ou um tonificante, respectivamente — foi isso que a indústria farmacêutica fez propaganda por longos anos; um tratamento liberal, sintomático, inespecífico.
Não se promovia a droga só para algumas condições escolhidas por um punhado de especialistas. Também não se delimitava tão artificialmente os ditos efeitos terapêuticos e os efeitos colaterais. O nome comercial da clorpromazina, o primeiro “antipsicótico” (como hoje chamamos), era Largactil (large+action) — isto diz muita coisa. A Big Pharma promoveu um uso amplo desta medicação. A clorpromazina, na década de seu lançamento (1950), fora promovida para náusea, dores, cirurgias, psicose, ansiedade e até para crianças hiperativas ou agressivas14. Sem dúvidas, é muito lucrativo uma droga que serve para todas especialidades médicas.
Foi precisamente do meio científico e de seu orgulho monumental que se começou a indicar ideias de que, agora, graças aos progressos luminosos, as medicações psiquiátricas estariam atuando especificamente na neurobiologia das doenças15. Uma bala mágica, uma cura avançada, jamais vista na história. Com isso, a Big Pharma teve de se adaptar.
Se antes suas propagandas eram para público geral, agora focariam nos médicos (isso também foi estimulado com o início da obrigatoriedade de receita médica para obtenção de medicações). Se antes produziam pouca “ciência”; agora irão tomar conta do método científico. Chegamos ao ponto, afirma David Healy, de ser impossível diferenciar a “ciência” da “indústria farmacêutica”. Os próprios protocolos oficiais, quais guiam a prática mundialmente, são feitos majoritariamente com estudos feitos ou patrocinados pela Big Pharma16.
Só assim que surgiria a crítica atual de que a Indústria Farmacêutica faz disease mongering — isto é, “comercialização de doenças”, a prática de ampliar (cientificamente) os limites diagnósticos (científicos) ou criar (cientificamente) novas doenças e promover agressivamente sua conscientização pública para expandir os mercados de tratamento (científicos). Nós médicos e cientistas quem criamos o monstro, por nossa pretensão orgulhosa de termos alcançando o milagre da pílula que corrige a mente.
Claro que tivemos problemas com a Big Pharma no Modelo antigo; mas hoje, com o Modelo atual, os problemas não só continuam: tornam-se indissolúveis, impossíveis de separar do que seria a própria cura. A Medicina e a Propaganda juntam-se numa massa amorfa cancerígena, na qual todos os tecidos se misturam e entrelaçam — e que ganham o poder de crescimento exponencial próprio do câncer. A tentativa de curar acaba por agravar ainda mais o problema. Isto é o puro suco do grande crítico austríaco Ivan Illich.
Relembro que até pouco tempo, as próprias empresas tinham dúvidas se seria realmente possível “fazer dinheiro de verdade” (to make real money) na psiquiatria! A psiquiatria era basicamente hospitalar ou asilar17. Quadros de “depressão” eram considerados bastante raros. Foi necessário muitas mudanças culturais (alavancadas tanto pela Indústria quanto pela Medicina) para a depressão, a ansiedade (e outros diagnósticos inovadores; como transtorno de personalidade, fobia social e transtorno do pânico) se tornarem o bê-a-bá da Big Pharma e uma de suas fontes mais lucrativas18.
O “modelo centrado na doença” é rejeitado ou visto como limitado por diversos críticos e estudiosos da psicofarmacologia. Pontos comuns em seus argumentos incluem: (a) o alto grau de integração do sistema nervoso central, de modo que mesmo medicamentos com alvos específicos necessariamente produzem ações não específicas; (b) a falta de validação de um modelo de doença para a psicopatologia; e (c) o uso clínico de medicamentos semelhantes para diferentes transtornos e o uso de medicamentos farmacologicamente distintos para transtornos semelhantes. As críticas existentes convergem para sugerir que as evidências sobre os efeitos dos medicamentos psicotrópicos apontam para a validade de um modelo "centrado no medicamento". (…)
Rethinking Models of Psychotropic Drug Action; Joanna Moncrieff.
[EXTRA]
Uma Mudança de Disposição
"Imagine uma sociedade que submete as pessoas a condições que as tornam terrivelmente infelizes e então lhes dá medicamentos para eliminar sua infelicidade. É uma ficção científica que já está acontecendo em certa medida em nossa própria sociedade. Em vez de remover as condições que tornam as pessoas deprimidas, a sociedade moderna lhes dá medicamentos antidepressivos. Na prática, os antidepressivos são um meio de modificar o estado interno de um indivíduo de tal forma que ele possa tolerar condições sociais que de outra forma consideraria intoleráveis." — Industrial Society and Its Future; Theodore Kaczynski.
Críticas como a de Theodore, há uns anos, eram aceitáveis e consideradas humanitárias. Até os jornais “mainstream” faziam notícia e reportagens do tipo. Agora, além de não ser nada bacana, virou uma colocação desumana e insensível. Não importa a veracidade da colocação, a questão não é esta; trata-se aqui da mudança radical de sensibilidade que tivemos. A sensibilidade geral influencia profundamente nossas disposições; mais do que gostaríamos de admitir. Essa mudança de disposição moldou e continua a moldar as bases de nossa sociedade.
É no mesmo sentido que Joanna termina seu artigo com estas palavras abaixo. Tal crítica seria considerada bela e piedosa há pouco tempo, hoje soa como algo desdenhoso em relação ao sofrimento na doença mental. Imagino que, num debate, seu opositor diria algo comovente à respeito das dores na depressão e como que a fala dela busca minimizar o sofrimento no transtorno mental. Antes, seria o contrário: ela quem poderia fazer o discurso comovente da medicalização da dor. Assunto também tratado pela Dra. Anna Lembke. Novamente, o objetivo aqui é antes notarmos a mudança de disposição, independentemente do grau veracidade de ambas (as duas contêm vantagens e problemas).
(…)os medicamentos apenas atenuarão a experiência. No final, a situação que provocou a emoção negativa precisa ser abordada. A depressão é um sinal de que uma mudança é necessária em algum aspecto da vida.
Against the stream: Antidepressants are not antidepressants – an alternative approach todrug action and implications for the useof antidepressants; Joanna Moncrieff.
Algumas citações acerca de alterações cerebrais nos transtornos psiquiátricos e o uso de medicações
“As principais áreas de pesquisa sobre a serotonina não fornecem comprovações constantes de uma associação entre a serotonina e a depressão, e não há suporte para a hipótese de que a depressão seja causada por atividade ou concentrações reduzidas de serotonina. Alguns dados são coerentes com a possibilidade de que o uso prolongado de antidepressivos reduza a concentração de serotonina.”
Joanna Moncrieff — The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence.
“Estudos post-mortem descobriram que as anormalidades dos receptores de dopamina eram inteiramente atribuíveis aos efeitos dos medicamentos.(…) os medicamentos neurolépticos, que bloqueiam os efeitos da dopamina nos receptores D2, causam um aumento compensatório no número e densidade desses receptores no cérebro. Esse achado foi confirmado para alguns dos novos antipsicóticos 'atípicos', bem como para medicamentos mais antigos em estudos recentes de imagem cerebral.”
Joanna Moncrieff — The Myth of the Chemical Cure.
“Os dados sobre os níveis de serotonina e noradrenalina em pessoas com depressão são incoerentes e confusas, e a maioria dos estudos falha em controlar os efeitos de possíveis fatores de confusão, como tratamento medicamentoso prévio. No geral, há poucos dados sugerindo que existe uma anormalidade característica em qualquer um desses sistemas associada à depressão.”
Joanna Moncrieff — The Myth of the Chemical Cure.
“Existe uma base patológica demonstrável para psicose/esquizofrenia a partir da qual a ação dos medicamentos 'antipsicóticos' pode ser compreendida? Décadas de pesquisa falharam em produzir comprovações claras e independentes de uma anormalidade de dopamina em pessoas com psicose ou esquizofrenia que não possa ser atribuída a alguma outra causa.(…) Além disso, há dados consideráveis de que a ingestão a longo prazo de medicamentos neurolépticos tem um impacto adverso na estrutura e função do cérebro.”
Joanna Moncrieff — The Myth of the Chemical Cure.
“Estudos independentes não confirmaram que existe uma anormalidade de monoaminas na depressão. Por exemplo, os resultados de estudos de imagem cerebral da anormalidade da serotonina são contraditórios. Alguns encontraram redução na ligação dos receptores de serotonina 1A em pacientes deprimidos sem uso de drogas, o que é consistente com a hipótese de que os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRSs) melhoram a depressão corrigindo uma deficiência na atividade da serotonina. Outros estudos, no entanto, não encontraram diferença entre pacientes sem medicação e controles ou um aumento no potencial de ligação em pacientes deprimidos.”
Joanna Moncrieff — Do Antidepressants Cure or Create Abnormal Brain States?
O público foi levado a acreditar que a depressão é causada por um desequilíbrio químico que os antidepressivos ajudam a corrigir; no entanto, não há evidências atuais de que qualquer tipo de medicamento atinja especificamente uma anormalidade biológica subjacente, e a existência de um estado ou estados cerebrais específicos para a depressão não foi demonstrado.(…) Os médicos precisam compartilhar essas evidências com os pacientes que estão considerando tomar um antidepressivo.
Against the stream: Antidepressants are not antidepressants – an alternative approach todrug action and implications for the useof antidepressants; Joanna Moncrieff.
Meu foco aqui é exclusivamente na Psiquiatria.
Aqui já vemos um descompasso crucial entre esta comparação: o prognóstico do DM1 melhorou substancialmente após a introdução do tratamento, enquanto a Depressão não diminuiu nem teve melhora de prognóstico ao longo das décadas, a despeito de diversos tratamentos medicamentosos. Aqui, um exemplo de estudo. Aqui, outro. E, aqui, outro.
Em alemão, a frase completa é: “Alle Dinge sind Gift, und nichts ist ohne Gift. Allein die Dosis macht, daß ein Ding kein Gift ist”. Não é coincidência que Gift em alemão é Veneno, e, em inglês, a mesma palavra é Presente (Prenda) — a etimologia é a mesma. Semelhante à noção de Fármaco (Pharmakós).
O Antidepressivo aumenta o suicídio principalmente nas primeiras semanas de uso em pessoas jovens — isso está, por exemplo, nas Bulas brasileiras e no “Black Box Warning” do FDA (nos EUA).
Eficaz não por corrigir algum distúrbio sexual; mas principalmente pelo efeito de diminuição de sensibilidade genital. Tópico profundamente estudado por David Healy.
O que não é algo difícil de atingir. Pelos próprios dados do FDA, o Antidepressivo melhora 5 de 10 pessoas com depressão (quer dizer, melhora o resultado de escalas preenchidas pelo avaliador, mesmo que o indivíduo em si se sinta pior); enquanto 4 de 10 pessoas melhoram no placebo inativo. A diferença, portanto, é 1 pessoa em 10; ignorando o fato de termos sérios problemas nos estudos incluídos e na análise; como explica David Healy, em The Creation of Psychopharmacology. Em Are Antidepressants as Effective as Claimed? No, They Are Not Effective at All (2007), Joanna defende até uma falta de “eficácia científca” dos antidepressivos na Depressão.
A não ser algum tipo de tratamento que restaure a produção natural de Insulina no corpo. O que é evidenciar novamente a especificidade da Insulina.
Consciente ou inconscientemente. Um exemplo deste é o pensamento de que o sujeito deve usar a medicação ad aeternum.
Manteve-se o termo “estimulante”, mas hoje são medicações vistas como “específicas” para TDAH. Não era este o caso antigamente.
Como bem explica David Healy. Centralmente refere-se ao “Sistema Nervoso Central”; perifericamente ao restante do corpo.
Naturalmente, fatores pessoais influenciam na resposta à medicação; como metabolismo, traços de personalidade, mutações genéticas e muito mais.
Importante pontuar: explico os efeitos experenciais do sujeito; sem usar termos cientificamente mágicos, não digo, portanto, que a medicação tem efeito “antidepressivo”, o que só obscura o efeito real da medicação.
Quantos médicos já leram, por exemplo, Peter C. Gøtzsche?
Edward Shorter - How everyone became depressed.
Já em 1954, participantes dum simpósio psiquiátrico em Washington, DC, afirmaram claramente que a clorpromazina e a reserpina estavam atacando o 'processo esquizofrênico subjacente' (Kinross-Wright, 1956) e exercendo um 'efeito específico nos mecanismos esquizofrênicos básicos' (Sainz, 1956).
David Healy — The Creation of Psychopharmacology; e David Healy — Pharmageddon.
Michel Foucault — O Poder Psiquiátrico.
Edward Shorter - How everyone became depressed.