Anedotas psiquiátricas #2
III) A depressiva transparente
Desta vez ligam-me de dentro da ala psiquiátrica — no plantão psiquiátrico, cuidamos tanto das emergências que chegam da rua quanto dos trinta pacientes internados. Uma paciente adulta jovem, caso de tentativa de suicídio, está chorosa e solicitando a sua alta. Estava sem acompanhante, sua mãe teve de sair mas voltará mais tarde. Pedem para que eu entre e faça algum manejo da situação.
Toco a campainha e espero a enfermeira liberar a porta — a porta para a ala é aquelas com fechadura magnética (eletroimã), pelo que os pacientes não têm livre acesso à rua. Encontro a paciente estirada numa poltrona. Estaria com um choro copioso e dramático se tivesse energias; mas tinha choro anêmico. Era então quadro grave: o choro não lhe causa alívio algum, assim chorava há muito, até não ter mais humor.
Cabisbaixa, diz-me que quer ir embora, pois já está melhor!
— Estou bem, não quero mais me matar. Quero ir para casa.
Fico em silêncio um tempo, deixo-a chorar fraquinho. Então pergunto:
— Carla, por que você quer se matar? — (Notem a formatação da pergunta).
Seu corpo desaba ainda mais. Sinto que escorregará ao chão a qualquer momento, como uma gelatina. Diz que está cansada, exausta. Não aguenta mais sofrer. (Relembro que o depressivo não quer morrer, mas deixar de sofrer. A única pessoa que já quis morrer de fato foi Kirilov de Os Demônios). Conversamos, Carla conta um pouco mais de sua história. E… mais uma vez, em poucos minutos, sem mudar nada de seu estado, diz que está bem e que deseja ir para casa.
Foi isto que chamou a minha atenção: o sofrimento é tamanho que não sobra espaço para articular sua manipulação. É tudo muito evidente! É claro que está pedindo a alta para tentar suicídio novamente. Parece mesmo uma criança que, para se esconder, tapa os próprios olhos, ou fica atrás da cortina com seus pezinhos para fora.
— Então eu assino um papel me responsabilizando! Quero ir para casa.
Explico-lhe que isso não existe: eu, como psiquiatra plantonista, sou responsável caso a libere; e não há papel que mude isso. (Também não sou Stepanovitch para fazer um suicida assinar um documento logo antes de seu suicídio). Devo, legalmente até, mantê-la internada se avalio que há risco iminente de vida. Seria como liberar um paciente que está na UTI em situação crítica — mas curável — sabendo que ele morrerá se assim fizermos.
Pensar que uma assinatura do paciente anule a responsabilidade do médico é ter uma visão legalista e mercantil da medicina. De resto, para um contrato ser válido é necessário igualdade entre as partes. Não é o caso na relação médico-paciente. Uma pessoa está enferma (logo, vulnerável e privada de liberdades); a outra, não (e esta também é perita na área, detendo conhecimentos e poderes específicos).
Há uma disparidade muito grande! Esta condição inescapável de vulnerabilidade impõe obrigações éticas ao médico. Em uma relação de tamanha desigualdade, o peso das obrigações recai sobre aquele que detém o poder.
Enquanto no ethos dos negócios, cada parte está preocupada consigo, com seu benefício próprio, o médico deve estar em defesa do paciente. O médico deve proteger o paciente, até eventualmente protegê-lo contra ele mesmo, como é o caso do suicida (e do psicótico também).
Importante dizer que a grande maioria continua viva sem realizar novas tentativas de suicídio, de acordo com estudos de acompanhamento ao longo de anos. Bem, por enquanto é assim, pois ainda não existe o suicídio garantido do MAiD (Medical Assistence in Dying; o suicídio assistido) no Brasil. Não fazemos ainda a eugenia pós-moderna do Canadá, a eugenia caridosa e sorridente do Estado.
As necessárias, trágicas, difusas consequências sociais do suicídio assistido serão vistas nas próximas décadas. Mas falemos mais disso em vindouros textos.
Por agora, basta imaginar o futuro no qual os jovens crescerão sabendo que a opção da morte segura, indolor e sem tabu está ali garantida para ele. Basta dizer sim — tudo bem, precisará também dizer que está depressivo e que os últimos protocolos científicos, estranhamente, não lhe surtiram efeito. Feito isso, o Estado e a sociedade aceitarão. Os pais devem aceitar também, aliás, de nada serviriam suas lágrimas...
É exatamente como casar-se vendo o divórcio como opção viável. Com efeito, esses jovens crescerão com a sedução do Suicídio Assistido. Isso é assustador.
Como o belo e inexorável progresso não chegou à nossa terra, fiz um manejo verbal. Carla aceitou continuar internada sem revoltar-se. Após uns dias estava melhor, não incrivelmente bem, mas com alguma esperança em relação ao seu futuro. Foi para casa: viva, e não numa urna funerária.
Não é uma combinação necessária, inexorável? A morte por MAiD requer a cremação: torna-se cadáver que não incomoda, que não é inconveniente nem dispendioso. Fica um punhado eficiente, límpido e inodoro de cinzas.
IV) De letra
Durante um atendimento no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), isso já faz mais de dois anos, a paciente, quem se queixava de ansiedade e depressão, disse-me:
— Agora, a ansiedade eu tiro de letra. Tenho um vidrinho de Rivotril em casa, um na bolsa e outro no carro.
Frase assustadora! Rebecca pensa que está lidando bem com sua ansiedade por ter sempre ao alcance das mãos — whitin arm’s reach — um remedinho, um benzodiazepínico (classe do clonazepam, chamado comercialmente de Rivotril). Bateu a ansiedade? Benzo para dentro. Eis, para Rebecca, a forma magnânima de se lidar com a ansiedade.
Mas calma lá: a questão não é ser gotinhas de clonazepam. Preciso ressaltar isto! Pois com o lançamento dos chamados Antidepressivos (mais especificamente a fluoxetina ao final da década de 80), fizeram dos benzodiazepínicos o bode expiatório da psiquiatria.
Fizeram quem? A Indústria Farmacêutica articulou, a Psiquiatria acadêmica propagou. Cúmplices do crime. O plano era finalmente admitir que os benzodiazepínicos causam dependência e vício (o problema vinha se tornando cada vez mais patente), mas para então apresentar a mais nova — e mais cara — medicação que não teria esses problemas: o Prozac (fluoxetina). Sacrificaram os benzodiazepínicos para alavancar a promoção dessa nova classe de medicações (antidepressivos ISRSs)1.
Os ISRSs não causariam dependência e seriam químicos “específicos” para depressão e ansiedade; diferentemente dos benzodiazepínicos que além de viciantes, seriam somente “sintomáticos”. Não é essa ainda noção popular? Quantos dos leitores, por osmose, não têm essa visão dos benzodiazepínicos? Como remédios puramente sintomáticos, que não vão até à raiz, que devem ser usados por pouco tempo, pois causam terrível dependência. Enquanto os Antidepressivos são, como sugere o nome, antídotos mais específicos para a depressão; e podem, devem ser usados ad eternum…
É claro que antidepressivos, como a fluoxetina, não são a cura química da depressão ou da ansiedade. É impossível existir uma cura química para algo tão complexo e variado. Além disso, os antidepressivos podem causar intensa dependência, muitas vezes pior do que os benzodiazepínicos — não causam vício; mas dependência, que é a dificuldade em ficar sem a medicação, por conta de sintomas de abstinência.
Em suma, inexiste essa diferença qualitativa entre benzodiazepínicos e antidepressivos. E, como diz David Healy, esta classe de medicamentos não é mais segura do que aquela — com isso queremos dizer que ambas são arriscadas, não estamos sugerindo uma redução da noção de perigo dos benzodiazepínicos.
Podem ajudar e eu utilizo ambas em minha prática; mas nenhuma das duas é a classe milagrosa que corrige, normaliza o cérebro do paciente. E o uso crônico de qualquer uma pode ser muito problemático! Daí a importância do médico e da relação humana médico-paciente: para continuamente avaliarmos se a medicação está ajudando de fato. Se fossem tão seguras e eficazes, bastaria preencher uns questionários e uma IA prescrever a medicação seguindo dados estatísticos…
É porque as medicações são perigosas, imprevisíveis, e não tão eficazes que precisamos de médicos.
Por fim, o problema de nossa paciente é achar que uma pílula, qualquer que seja, é a forma completa e ideal de lidar com a ansiedade. Rebecca nunca sequer imaginou refletir nas causas da ansiedade, nos problemas reais que ela está indicando (ou seja, a ansiedade muita vezes é nossa amiga, um sistema de alerta que busca prevenir consequências ainda piores). É igualmente inconcebível para Rebecca ver a profunda cura que pode advir de jardinagem, atividade física, meditação mindfulness, literatura, psicoterapia e muito mais.
Como fazê-la mudar de cabeça? Não é tarefa fácil, pois seu pensamento veio de todo o funcionamento atual de nossa sociedade. Rebecca não inventou nada. Vejo-a mais como uma vítima da atual medicalização da vida — e da morte.
De fato, como prevenir que Rebecca seja futura candidata para MAiD, quando a dependência e tolerância aos remédios tomar conta, e o vazio suprimido por anos ocupá-la por total?
Nunca mais a vi. E o pouco que tentei conversar não surtiu efeito algum.
Quaisquer informações pessoais, como nome e idade, serão sempre alteradas.
Para os leitores de René Girard: foi sacrifício consciente, então está mais próximo dos sistemas totalitários; não do bode expiatório primitivo.